“Juiz não é Deus”. A frase dita pela agente de trânsito Luciana Silva
Tamburini e condenada por desembargadores da 14ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Rio provocou uma repercussão nas redes sociais.
Há 55 anos, um dos mais prestigiados antropólogos do país, Roberto Da
Matta, explicava, no livro “Carnavais, malandros e heróis”, o “Você sabe
com quem está falando?”, frase tão usada por autoridades, para
demonstrar poder. Na opinião de Da Matta, a decisão judicial é
corporativista e escancara a desigualdade da sociedade brasileira.
— Esse caso mostra o princípio da hierarquia, é exatamente “Você sabe
com quem está falando?”. Nessa sociedade em que vivemos, a distância do
prestígio entre as duas carreiras é tão grande que, quando ele se
referiu a ela como juiz, ele tentou eliminá-la da situação. A decisão
dos desembargadores é pior ainda. É o “Você sabe com quem está falando?”
coletivo. É um recado: não se meta com juízes. Mexeu com um juiz, mexeu
com todos. Vai ser punido — ironiza.
Para o pesquisador, o caso
mostra que as leis são feitas para serem cumpridas por todos, mas o
“Você sabe com quem está falando?” permite que alguns consigam burlar
regras impunemente. Para explicar, Da Matta faz analogias com o direito a
celas especiais para pessoas com curso superior completo e com as
regras do futebol.
— A lei é feita para coibir delitos e orientar o que fazer diante de
determinados delitos. No entanto, no Brasil, essa lei depende de quem
cometeu o delito. Por exemplo, eu, como professor formado em história,
se cometer um crime, não vou ser preso ao lado dos outros que não têm um
diploma de curso superior.
O tratamento é diferente a partir daí. O
juiz, formado, também não é julgado do mesmo jeito. Isso já mostra como a
hierarquia rege a sociedade. Outro exemplo é o futebol: na regra, diz
que dar carrinho por trás não pode. A punição, na primeira vez, é um
cartão amarelo. Na segunda, vermelho. Agora, você vê toda hora que um ou
dois jogadores mais conhecidos fazem esse tipo de falta durante todo o
jogo e a punição não é a mesma — explica.
O antropólogo ressalta,
entretanto, que a internet e toda a repercussão que o caso ganhou nas
redes sociais podem provocar um final diferente a essa história. Segundo
ele, se o caso tivesse acontecido em tempos passados, não haveria nem
discussão sobre o tema.
— É um fenômeno novo, principalmente no
Brasil. O Facebook, por exemplo, tem uma tecnologia de transparência que
é mortal para o político safado e para o bandido que acha que é dono do
cargo. Até mais ou menos os anos 60, isso era comum. O cara dizia que
era general e nada acontecia com ele. Na época do império, quem era
preso era o casa que ousava parar a carruagem real. Agora, esse caso vai
para a próxima instância e, com essa repercussão toda, pode ter uma
reviravolta — comenta Da Matta.
A agente Luciana Tamburini já declarou que vai recorrer da decisão
judicial. O caso deve chegar ao Superior Tribunal de Justiça. O juiz
João Carlos Correa disse que não vai se pronunciar sobre o assunto. Pelo
seu secretário, o magistrado agradeceu a oportunidade de falar, mas
afirmou que “a sentença já diz tudo por si só”. Da Matta já escolheu um
lado nessa história.
— Quando ela diz que “juiz não é Deus”, ela,
que na ocasião também era autoridade, dá a ele uma lição que todas as
autoridades deveriam aprender. Deveria estar escrito nos manuais: ‘juiz
não é Deus”. Essa frase deveria estar no lugar das imagens de Cristo
crucificado nos fóruns: “juiz não é Deus” — declara.